sexta-feira, 30 de maio de 2014

Vida Interrompida

Ontem, ao folhear um livro juvenil, daqueles que estão nos escaparates e cuja capa é demasiado atractiva para não lhe pegarmos, percebi que estava cheio de letras de todos os tamanhos e cores, numa tentativa de apelar aos sentidos do jovem leitor. Não havia duas palavras com letras do mesmo estilo, nem cor. Desenhos, explosões, sublinhados, remetiam o texto para uma espécie de vómito sensorial, como se o livro precisasse de tudo aquilo para enfeitiçar o jovem leitor. Como se um texto de linhas limpas e tranquilas não bastasse.
Vendo bem, acho que podemos aplicar esta nova máxima de vómito sensorial a tudo na nossa vida.
Mil e uma dietas de todas as cores e feitios, que todos seguem e partilham, mil e uma fotografias de momentos nossos que não são verdadeiramente sentidos a menos que sejam partilhados por milhares de outras pessoas, mil e um pensamentos que não se realizam se não tiveram centenas de likes, ou comentários, mil e uma notícias, mil e um concertos ao vivo, mil e um livros cujas linhas fotografamos, mil e uma músicas que fazemos questão de mostrar que ouvimos, mil e uma vidas em que se transforma a nossa simples e não assim tão preenchida existência.
Já não sabemos estar no momento, a menos que o partilhemos. Já não sabemos confiar em nós próprios, a menos que uma falsa sensação de confiança nos seja incutida pelos seguidores virtuais.
Já não sabemos estar apenas a ler um livro, a ouvir uma música, numa fila de trânsito, num passeio por uma estrada à beira mar, sem sermos interrompidos pelo ruído virtual. Tal como nos livros juvenis, que interrompem constantemente a concentração, com explosões, cores e formatos desiguais, como se o jovem não pudesse, ou não conseguisse concentrar-se sem ruído, também a nossa vida caminha para o abismo do medo da solidão.
Estamos a perder a capacidade de estarmos num só lugar, dentro apenas de um único momento e de percebermos que a nossa vida não tem de ser constantemente perturbada para fazer sentido.
Os nossos melhores momentos não são para "guardar" junto de milhares de pessoas, mas dentro do nosso coração.
As melhores fotografias são aquelas que apenas o nosso olhar concentrado sabe captar e aqueles que amamos têm de estar à distância de uma conversa possível, de um olhar focado.
Até há uns tempos atrás achava as declarações do Miguel Sousa Tavares, sobre Facebook e afins, a roçar o extremismo islâmico, mas hoje consigo entender uma parcela do que ele proclama, do que ele visionou antes de tantos.
O facebook é uma ferramenta interessante e útil em muitas vertentes, sim, mas corre também o tremendo risco de nos fazer perder o foco e de nos fazer esquecer a vida tal como ela deveria ser, com cheiro, textura e arrebatamento concreto. Quando lhe atribuímos mais relevância do que ao chão debaixo dos nossos pés, quando entendemos mais importantes os elogios e mensagens públicas, do que as palavras ditas em privado, quando nos aventuramos a dizer em mensagens com conhecidos virtuais, o que não ousamos dizer olhos nos olhos e damos assim aso a aventuras que nos elevam, ainda que apenas virtualmente, o espírito, alguma coisa está terrivelmente mal na nossa sociedade e o facebook mais não é do que um patético palco de pessoas carentes de vida verdadeira.


mais do que inspirada aqui

segunda-feira, 26 de maio de 2014

X

Ontem era suposto haver eleições e o soberano povo, confrontado com as seguintes hipóteses:
Voto nulo, desenhando pequenos pénis, ou maminhas na quadrícula.
O Partido dos Animais e da Natureza, enquanto se apaga o charro antes de penetrar na urna.
Marinho Pinto e os seus modos sexys de homem do talho, de cutelo na mão a mandar todos para o grande pénis nigeriano.
O senhor de quem não recordo o nome, mas que tem uma cremalheira implantada e diz que faz parte da oposição.
Dois homens e um destino-que-foi-foder-o-trabalhador-em-geral-e-o-funcionário-público-e-reformados-em-particular.
Ganharam dois:
Os que disseram "que se fodam todos, vou continuar com o rabo alancado no sofá a ver a season completa do Game of Thrones e Marinho Pinto.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

trabalhar por gosto também cansa

Trabalhar por prazer também cansa, mas é no cansaço que encontro um prazer que andava arredado da minha vida: O gosto de descansar do meu trabalho em vocês.
Filhos chatos, tantas vezes refilões e exigentes, filhos que não me proporcionam folgas, nem fins de semana, filhos que me despertam antes das sete e me têm derreada antes das oito, mas de cheiro doce e sorriso brilhante.
Pudesse eu descansar de todas as fadigas limitando-me a encostar o meu rosto no vosso peito sereno e tudo seria sempre simples para mim.
Levei-te a ver o Concerto da Violleta ao cinema e surpreendi-me ao gostar de partilhar contigo aquele momento de pura cumplicidade. Olhei-te e vi uma menina crescida e sensível, já com gostos de pré adolescente. Deste-me a mão e cantaste as espanholadas todas que te encantam e eu achei-te aquela graça parva que acham todos os pais a coisas que mais ninguém entende.
Levei-te depois a um espetáculo maravilhoso no CCB, cheio de sombras e dança e mais uma vez descansei no teu olhar de pura rendição. Caminhámos de mão dada por Belém e disseste-me que não querias voltar para casa, que se estava bem ali comigo e descansei mais uma vez do trabalho e do resto do mundo apenas por te ter ali e por partilhar contigo o mundo pelos teus olhos de menina.
Quanto a ti, António, estás cada vez mais exigente, cada vez mais crescido e independente, fazes questão de assoar-te sozinho, deixando um terrível rasto de gosma pela cara toda, mas empunhando um sorriso de vitória pela pequena conquista de independência. Gostas de fazer tudo sozinho e de ter os teus momentos a sós, mas sei que ainda precisas de mim, quando te vens deitar ao meu lado no sofá só para me perguntares se está tudo bem comigo. Quando sorris tudo o resto parece assumir relevância pequena e quando me abraças, esqueço-me de como é complicado gerir tudo quando a vida não é só vocês.
Trabalhar por gosto também cansa e tenho andado cansada, demasiado. Mas espero que esse cansaço nunca me retire a capacidade de vos olhar como vocês me olham.

domingo, 11 de maio de 2014

Todos os Homens

Têm um pequeno talibã dentro deles.
Mais, ou menos adormecido, mais, ou menos disfarçado por camadas de anos e de gerações de suposta democracia e igualdade de direitos, mas ainda assim um talibã.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

impunidade

Depois de muito esmiuçar a lista de defeitos esmiuçáveis de um Estado de Direito, cheguei à conclusão de que o defeito que mais abomino é a impunidade.
A impunidade inerente a uma Justiça merdosa é um dos grandes factores que nos arrastam para o fundo do lodaçal em que nos encontramos.
Quem é que quer investir num país onde a justiça não funciona? Que tipo de pessoas atrai um país onde a justiça é uma anedota? Pessoas obviamente merdosas e sem escrúpulos.
Que tipo de pessoas forma um país onde a Justiça é uma piadola?
Pessoas que se calam, que não acreditam no poder de uma reclamação, de uma acção, de um grito para fazer valer os seus direitos. Pessoas que engolem e não choram (nada de analogias porcas), simplesmente porque não vale a pena chorar.
Pessoas que se esquecem que têm direitos, pois, na prática, é como se não os tivessem.
Pessoas que sabem e visualizam todo o percurso tortuoso que as espera se intentarem o que quer que seja contra quem os injustiçou.
Pessoas resignadas, chatas, taciturnas, com úlceras.
E tudo isto é triste, tudo isto é fado.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Consideração sem grandes variáveis

Alguém publicou um excerto de uma entrevista a Vasco Graça Moura e nessa entrevista ele dizia qualquer coisa como: O Estado não deve subsidiar cinema que apenas o próprio autor entende.
A pessoa que partilhou o excerto da entrevista mostrava a sua indignação. No meu caso, tive vontade de aplaudir de pé.
Chega de arte para próprio gáudio, ou para gáudio das elites crítico intelectuais às nossas custas.
Escrever para o público em geral e agradar-lhe. Esse sim é o grande desafio de quem deseja subsídios.