domingo, 5 de junho de 2011

Hoje, em dia X, é isto

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio

5 comentários:

R disse...

E foi escrito há tanto tempo. Muito adequado ao dia de hoje. Eu também não vou para onde me chamam, para onde seria mais normal e cómodo seguir. Vou antes pelo caminho da minha vontade e da minha verdade. Ana gostei tanto, mas tanto de ler José Régio. Obrigada por isso. Bjs

Lídia Borges disse...

José Régio e este "Cântico Negro" a ilustrar o triste "fado" que se toca, hoje, na guitarra portuguesa.

L.B.

Naná disse...

Acho que este poema tem pautado muito da minha vida! É de certeza um dos grandes poemas que eu gosto e continua actual, acho que cada vez mais.
Como este, também gosto do "Poeta castrado, não!" do Ary dos Santos!

Sílvia disse...

Se soubesses o quanto gosto deste poema :)

margarida disse...

Este Cântigo Negro de José Régio e o Poema do Adeus de Eugénio de Andrade foram os que me abriram o coração à poesia. Como é possível ficar indiferente?