Há cerca de um ano que os duches da natação da Alice não funcionam correctamente. Ora projectando água a escaldar, ora a ferver. Não se consegue temperar a água. Não existem suportes para o chuveiro e os manípulos aguentam-se cerca de cinco segundos, antes de cortarem a água.
Nos duches, os gritos das crianças que são escaldadas, ou congeladas, são o pão nosso de cada dia e as queixas repetidas das mães nos balneários são a banda sonora dos meus fins de tarde, duas vezes por semana.
Há cerca de um ano que me queixo na recepção do complexo desportivo novo, onde pago uma mensalidade para a minha filha aprender a nadar, e obtenho a resposta delicada de que estão a tratar disso, que é preciso orçamentar e chamar técnicos e partir paredes e, juro, que qualquer dia estou a ouvir que é preciso comissão de apoio e de inquérito e estatísticas e estudos de impacto ambiental para substituir uma merda de umas torneiras.
Depois de já ter reclamado por escrito, numa espécie de pré-aviso ao livro de reclamações, sexta feira passada saltou-me a escassa carica que ainda possuía e pedi o virgem livro de reclamações. A directora do complexo tentou dissuadir-me, mostrou-me as caixas com as torneiras novas que já tinham chegado e que tratariam do assunto ainda na semana seguinte, mas fui irredutível e sob o olhar da minha filha pequena, surgiu ali uma discussão que atraiu atenções e fez virar cabeças.
Ela respondeu-me que me daria mais trabalho a escrever no livro, do que lhe daria a ela responder à reclamação.
Eu disse-lhe que estava bastante enganada, que podia ficar ali a escrever a noite inteira.
Mas foi quando a senhora me disse "Mas mais nenhuma mãe ainda se queixou", que se fez luz no meu pálido cérebro, em relação ao material com que são feitas a maioria das pessoas.
As mulheres que suspiravam e se queixavam e ameaçavam, só o faziam nos balneários, nos bastidores, entre dentes.
E isto vale para uma imensidão de coisas no nosso país.
Por isso, quando voltou a ressurgir o tema das praxes, depois da tragédia no Meco, e depois de o meu primeiro pensamento de asco ter ido para aqueles que se vestem como feiticeiros e exercem poder sobre os novatos, humilhando-os, numa espécie de exercício de masturbação sado masoquista, para inflamar o pouco que possuem a nível de neurónios, a minha reflexão recaiu sobre os jovens que se sujeitam a isto e que assinam termos de responsabilidade para poderem ser humilhados sem barreiras, em fins de semana grotescos, organizados por seres acéfalos que sonham estar nos SEALS, ou em organizações secretas ao estilo americano, mas que estão na merdaleja de cima.
A Alice assistiu ao meu protesto, primeiro com alguma timidez e depois com um sorriso. Ela sabia que eu tinha razão e quando temos a razão do nosso lado, não há argumentos que a deitem abaixo.
Devemos sempre, mas sempre rebelarmo-nos, sem pudor, quando aquilo que nos fazem não está de acordo com aquilo em que acreditamos, ou que merecemos.
Pais deste mundo, não produzam exemplos de cobardia, de acomodamento, de timidez, quando toca a defendermo-nos e aos outros de injustiça.
O que é que terá passado pela cabeça destes jovens que morreram no mar (e sabe-se lá de mais quantas centenas escondidas por estes acordos patéticos e senis de comissões de praxe) para abdicarem da sua dignidade, para pensarem que mereciam passar por toda a sorte de humilhações idiotas para subirem na hierarquia de coisa nenhuma?
Não é tanto os medíocres seres que se mascaram de Harry Potter e gritam, cuspindo-se enraivecidos, para os estudantes novos. Não é tanto os idiotas que me assustam, porque o mundo está repleto desses pequenos seres. É sim, todos os outros que se sujeitam aos idiotas, como se não merecessem melhor. Isso sim, tira-me o sono e faz-me querer ensinar os meus putos a jamais se sujeitarem a isto.
*imagem retirada da net
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