Ontem, ao folhear um livro juvenil, daqueles que estão nos escaparates e cuja capa é demasiado atractiva para não lhe pegarmos, percebi que estava cheio de letras de todos os tamanhos e cores, numa tentativa de apelar aos sentidos do jovem leitor. Não havia duas palavras com letras do mesmo estilo, nem cor. Desenhos, explosões, sublinhados, remetiam o texto para uma espécie de vómito sensorial, como se o livro precisasse de tudo aquilo para enfeitiçar o jovem leitor. Como se um texto de linhas limpas e tranquilas não bastasse.
Vendo bem, acho que podemos aplicar esta nova máxima de vómito sensorial a tudo na nossa vida.
Mil e uma dietas de todas as cores e feitios, que todos seguem e partilham, mil e uma fotografias de momentos nossos que não são verdadeiramente sentidos a menos que sejam partilhados por milhares de outras pessoas, mil e um pensamentos que não se realizam se não tiveram centenas de likes, ou comentários, mil e uma notícias, mil e um concertos ao vivo, mil e um livros cujas linhas fotografamos, mil e uma músicas que fazemos questão de mostrar que ouvimos, mil e uma vidas em que se transforma a nossa simples e não assim tão preenchida existência.
Já não sabemos estar no momento, a menos que o partilhemos. Já não sabemos confiar em nós próprios, a menos que uma falsa sensação de confiança nos seja incutida pelos seguidores virtuais.
Já não sabemos estar apenas a ler um livro, a ouvir uma música, numa fila de trânsito, num passeio por uma estrada à beira mar, sem sermos interrompidos pelo ruído virtual. Tal como nos livros juvenis, que interrompem constantemente a concentração, com explosões, cores e formatos desiguais, como se o jovem não pudesse, ou não conseguisse concentrar-se sem ruído, também a nossa vida caminha para o abismo do medo da solidão.
Estamos a perder a capacidade de estarmos num só lugar, dentro apenas de um único momento e de percebermos que a nossa vida não tem de ser constantemente perturbada para fazer sentido.
Os nossos melhores momentos não são para "guardar" junto de milhares de pessoas, mas dentro do nosso coração.
As melhores fotografias são aquelas que apenas o nosso olhar concentrado sabe captar e aqueles que amamos têm de estar à distância de uma conversa possível, de um olhar focado.
Até há uns tempos atrás achava as declarações do Miguel Sousa Tavares, sobre Facebook e afins, a roçar o extremismo islâmico, mas hoje consigo entender uma parcela do que ele proclama, do que ele visionou antes de tantos.
O facebook é uma ferramenta interessante e útil em muitas vertentes, sim, mas corre também o tremendo risco de nos fazer perder o foco e de nos fazer esquecer a vida tal como ela deveria ser, com cheiro, textura e arrebatamento concreto. Quando lhe atribuímos mais relevância do que ao chão debaixo dos nossos pés, quando entendemos mais importantes os elogios e mensagens públicas, do que as palavras ditas em privado, quando nos aventuramos a dizer em mensagens com conhecidos virtuais, o que não ousamos dizer olhos nos olhos e damos assim aso a aventuras que nos elevam, ainda que apenas virtualmente, o espírito, alguma coisa está terrivelmente mal na nossa sociedade e o facebook mais não é do que um patético palco de pessoas carentes de vida verdadeira.
mais do que inspirada aqui
Grandes diálogos: O Apartamento
Há 2 semanas
6 comentários:
Tão verdade, Ana.
Um grande beijinho!
Não podia estar mais de acordo. Acho que anda tudo perdido...
Aqui foco-me apenas na última parte do teu post.
Sim, esse é o problema principal dos amigos(as) virtuais. Quando os(as) imaginamos (sim porque não os conhecemos pessoalmente), como pessoas que bem lá no fundo sempre fantasiámos terou experimentar um dia. É uma dúvida que me assiste. Como se faz uma amizade no facebook ou outras redes com alguém que não conhecemos? Para mim é carência. Não está mais que implícito os perigos que isso por trazer? Apesar de se ouvirem histórias lindas de amor…Uma atração virtual onde tudo é permitido dizer e fazer porque não damos a cara e tudo se torna mais fácil. Como também a mim um dia aconteceu. Porém entrei tanto nessa fantasia que me esqueci dos meus. Dos meus de carne e osso. É bom ser elogiado mimado e desejado, mas é melhor quando o sentimos fisicamente pela nossa mulher ou o nosso homem ou namorado e pelos nossos filhos. 3 no meu caso. Quase que arruinei o melhor que tinha na vida até ao dia que olhem para nós os 5 e pensei… o que pode ser melhor que isto? O Facebook e afins são armas poderosas que tem o poder de destruir, sim destruir, tudo à nossa volta. È uma boa ferramenta de trabalho e de lazer mas tem o seu lado inverso e perverso. Desejo que, se passas por algo semelhante, como eu passei, possas refletir. Boa sorte.
Por estes dias, estas tuas palavras fazem imenso sentido!
Ainda bem que mais alguém pensa como eu para não me sentir tão diferente do rebanho! :)
Beijinho. Gosto do seu blog.
CC
Catarina, Mariah, Naná, CC, ando facebookagoniada mesmo e vejam o filme que linko no final.
entreoceueaterra, nada do que aqui escrevo é partilha, ou desabafo íntimo, tirando as várias reflexões sobre amor materno, são apenas reflexões, que valem o que valem.
Bjs
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