Ela tem os dentes cravados no lábio inferior, como se quisesse mutilar-se de fúria. Ele revira os olhos um sem número de vezes, enquanto esvazia o carro do supermercado, sob o olhar impaciente dela.
- Trouxeste as curgetes?
- Mas era para trazer?
O olhar dela tolhe-o de pavor, deixando-o ao sabor daquela espécie de rigor mortis familiar, que lhe trespassa cada músculo do corpo.
O silêncio dela é a mais afiada das facas e ele sabe que a falha da curgete pesará no resto da viagem até casa e, muito provavelmente, no resto do dia.
São quilos de merdas inúteis sobre o tapete rolante da caixa registadora. Quilos e quilómetros de códigos de barras, de mantimentos que nada mantêm, além do saldo negativo, de cheiros, detergentes, iogurtes calóricos, cereais que não são verdadeiramente dietéticos.
Ele deixa de lhe responder, pois sabe que nada do que disser a satisfará. Ela deixa de o olhar, pois é asco que tenta não sentir por aquele homem que se esquece das curgetes e que se esquece constantemente de todas as coisas importantes para ela, e enchem os sacos, um após outro, com gestos afinados por anos de rancor. Ela retira o que acha que não tem cabimento no saco que ele escolheu e reposiciona-o, de acordo com o seu critério meticuloso e superior.
Sinto as veias dele pulsarem. Posso jurar que vi o pescoço aumentar de tamanho, tal o volume de sangue naquelas artérias prestes a estoirar de um momento para o outro.
A conta astronómica é dita em voz alta, a pergunta quanto à posse de um qualquer cartão de gasolina é feita mecanicamente e ele estende os cartões, arruma os sacos no carrinho e deixa-a sozinha, enquanto avança para o estacionamento, ganhando assim uns segundos para se recompor e para achar que tudo é relativo.
Atrás de mim, um casal de velhotes. Ela diz-lhe que ainda vai aproveitar o resto da tarde para acabar de passar as fronhas e os lençóis, ele responde-lhe com um compreensivo: Muito bem, faz como achares melhor e ela repete-lhe que é melhor assim, que depois nunca mais pega nos lençóis. Ele já não lhe responde.
Eu estou no meio, plenamente consciente das vidas dos outros em meu redor. Mais desperta do que nunca, atenta até à ponta dos cabelos, perfurada até à raiz dos meus ossos e feliz, absoluta e rigorosamente feliz por estar sozinha naquela fila de supermercado.
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5 comentários:
Há demasiados exemplos destes à vista de todos, lamentavelmente...
às vezes revejo-me neste post...medo...
Excelente texto, Ana. Fui transportada para muitas das cenas a que também eu assisto (com demasiada frequência) na fila do "meu" Pingo Doce. Uma tristeza...
É lamentável e é uma tristeza mas eu, seguramente, estaria também feliz por estar sozinha na fila ;)
adorei o teu texto. tenho pensado na courgette desde então e enquanto me lembrar, vai ter de servir para relativizar. porra.
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